Do site da Revista Época. A reportagem é bastante extensa e bem completa, mas aqui só reproduzimos algumas partes.
Novas pesquisas mostram que os animais são mais inteligentes do que se imagina. Alguns dão até sinais de consciência.
Brown é um dos 15 cães golden retriever do casal de criadores Márcio e Cecília Leite, de São Paulo. Um dos melhores representantes da raça: obediente, calmo e pouco afeito a latidos. Mas naquele 12 de outubro de 2006 nenhum de seus tratadores entendeu por que ele havia entrado em casa tão agitado, latindo e pulando nas paredes. Nem por que estava solto, fora de seu canil. Eles não sabiam que o cachorro tinha saído para passear com seu dono, Márcio. Era a primeira vez que Brown, um cão de competições de beleza, aventurava suas patas douradas pelas ruas do condomínio. A alegria do passeio acabou quando Márcio tropeçou e caiu em uma ribanceira, a 2 quilômetros de casa. Brown tentou levantá-lo. Como não conseguiu, foi buscar ajuda em casa. Ninguém lhe deu atenção. Márcio foi encontrado pela segurança do condomínio. As fraturas no rosto causadas pelo tombo e outras complicações lhe renderam 28 dias de hospital. Seis sedado. Só quando recobrou a consciência pôde desfazer o boato que corria entre médicos e enfermeiras: Brown não era o “cão que atacara” o próprio dono. “Ele tentou me salvar.”
A atitude de Brown não é só uma emocionante demonstração de afeto. Mostra o que muitos donos de bicho de estimação desconfiam, e que novas pesquisas científicas estão começando a constatar. Os animais são mais inteligentes do que parece. Um tipo de inteligência bem parecida com a nossa. O imaginário construído em torno da idéia do filósofo francês René Descartes, no século XVII – de que os animais seriam como máquinas, desprovidos de emoção e pensamento –, persistiu até o século XX. Mas foi definitivamente sepultado por estudos recentes, como o publicado em março por cientistas da Universidade Saint Andrews, na Escócia. Eles confirmaram que os animais não estão tão distantes de nós em uma habilidade considerada exclusivamente humana: a linguagem.
CÃO-HERÓI: Brown brinca sob a supervisão de Márcio e sua mulher, Cecília. O cão achou o caminho de casa para pedir que alguém socorresse o dono
“Nós subestimamos a capacidade dos animais por muito tempo”, diz Irene Pepperberg, pesquisadora da Universidade Brandeis, nos Estados Unidos, uma das pioneiras no estudo da inteligência animal. Irene adora contar como outros pesquisadores reagiram quando ela anunciou que pretendia ensinar o papagaio Alex a falar. Eles queriam saber o que ela havia fumado. Parecia loucura, mas ela só queria que a ave pudesse lhe contar como pensava. Sua idéia deu tão certo que o papagaio aprendeu a contar e a diferenciar conceitos como cor, formato e material. Olhando seus brinquedos, ele sabia responder qual chave era maior, a verde ou a amarela. “Green” (verde), dizia.
O talento de Alex mostra que elementos de nossa inteligência não são exclusivos aos humanos. “Formas avançadas de processar informações estão em muitas criaturas”, afirma Irene. “Durante a evolução, tanto animais como seres humanos estavam sujeitos às mesmas pressões ambientais, que selecionaram essas características.” Entender como os animais pensam pode ajudar a revelar por que os seres humanos desenvolveram uma mente tão complexa.
A origem da linguagem é uma das questões mais intrigantes. Até onde se sabe, apenas os seres humanos possuem tal sistema. Somos capazes de dar nomes para as coisas que vemos no mundo e ainda podemos relacioná-los em uma frase, com termos sem significado concreto (como preposições e artigos). Dependendo da ordenação desses elementos, produzimos múltiplos significados. Graças a esse sistema podemos transmitir idéias abstratas, como a noção de passado, presente e futuro.
Experiências com outros primatas, nossos parentes mais próximos na escala evolutiva, tentaram verificar se eles seriam capazes de aprender nossa linguagem. Os estudos ficaram famosos porque era irresistível ver chimpanzés usando a linguagem de sinais, a mesma usada por pessoas surdas. E eles tinham certo talento. Nim Chimpsky, um chimpanzé criado por pesquisadores americanos, fazia o gesto de “sujeira” (seu jeito de pedir para ir ao banheiro) só para escapar das aulas. A fêmea Washoe surpreendeu seus criadores ao unir os sinais de ave e água (ave da água) para se referir a um cisne.
As pesquisas causaram entusiasmo na década de 1970, mas logo os pesquisadores descobriram que os animais eram apenas bons aprendizes. E que tinham uma grande capacidade para se comunicar. Porém, nunca poderiam aprender a usar as palavras como os seres humanos. Talvez falte ao cérebro deles aquilo que nos faz capaz de ter linguagem (e que até hoje a ciência não sabe exatamente o que é). Os chimpanzés haviam aprendido alguns sinais e até os combinavam aleatoriamente. Mas sem consciência do significado exato.
É por isso que um cachorro, uma criatura mais distante do ser humano na escala evolutiva, embasbacou cientistas. Há quatro anos, o cão Rico, da Alemanha, deu indícios de que talvez as bases do tipo de raciocínio que usamos para aprender a linguagem também tenham surgido em outras espécies. Rico, um border collie, usava o mesmo processo mental que as crianças humanas para aprender palavras novas. O dono apresentava a ele vários brinquedos, entre os quais apenas um era novidade. E pedia para que o cão pegasse justamente o objeto desconhecido. Rico inferia que aquele som novo só podia corresponder ao brinquedo que ainda não tinha nome. Assim ele aprendeu mais de 200 palavras.
“Por enquanto, só encontramos essa habilidade em um único cão”, diz Juliane Kaminski, pesquisadora do Max Planck Institute, o centro alemão que estudou Rico. “Mas já é suficiente para dizer que essa técnica de aprendizado não é exclusiva dos humanos.” Rico morreu aos 12 anos, no ano passado. O significado de seu talento ainda gera discussão. Há quem afirme que o cachorro não tinha nenhuma técnica inata para associar sons a objetos. Apenas teria uma grande capacidade de raciocínio, adaptado para aquela tarefa.
As habilidades de Alex e Rico podem nos fazer considerar a maneira como tratamos os animais. Mas nenhuma outra capacidade tem tanto potencial para elevar o status dos bichos entre os seres humanos quanto a consciência. Admitir que um animal é capaz de reconhecer sua individualidade e de entender seu papel em um ambiente significa mudar a forma como os seres humanos sempre usaram os animais. Como continuar abatendo bois para comer? Como sacrificar macacos para testar remédios em laboratórios? Nenhuma pesquisa provou que os animais têm nosso nível de consciência, mas estudos sugerem que eles têm algum tipo de entendimento sobre a própria identidade.
Dois golfinhos do Aquário de Nova York, que tinham como hábito se admirar nas paredes espelhadas do aquário, chamaram a atenção pela atitude. Reconhecer o próprio reflexo no espelho é considerado um indício de consciência porque mostra compreensão de identidade. Parece uma capacidade banal, mas os bebês humanos só a adquirem entre os 18 meses e os 2 anos de idade, fase que coincide com o início do desenvolvimento de idéias abstratas (como a percepção da própria individualidade).
Não deixa de ser perturbador perceber que elementos da inteligência humana também podem ser encontrados em outras criaturas. Não somos o prodígio que pensávamos? “Nenhuma outra espécie reúne todas as capacidades que caracterizam a inteligência humana”, afirma o neurofisiologista Gilberto Xavier, professor da Universidade de São Paulo (USP). Apenas os seres humanos são capazes de recombinar informações para criar um novo conhecimento. De perceber que um mesmo problema pode ser resolvido de diversas maneiras. De criar símbolos.
Isso não significa que sejamos a forma acabada da inteligência, o estágio final da evolução. “Cada animal desenvolveu o tipo de inteligência necessária para solucionar os problemas do ambiente em que vive”, afirma o etólogo Eduardo Ottoni, da USP. Eles podem, inclusive, ter habilidades mais extraordinárias que as humanas. Uma abelha é capaz de contar para suas companheiras, apenas por meio de uma dança, onde viu flores cheias de pólen. Os movimentos indicam a distância da colméia e o ângulo em relação ao Sol. Os morcegos visualizam mentalmente a localização de todos os objetos em um ambiente apenas pela emissão de sons. “A inteligência dos animais é como um raio laser, concentrada. A dos humanos é como uma lâmpada, difusa”, diz Marc Hauser, professor da Universidade Harvard, nos EUA.
Se a ciência nunca entendeu tão bem as diferenças e semelhanças entre a inteligência humana e a animal, ainda está longe de saber como elas são traduzidas física e quimicamente no cérebro. Será que os animais não têm alguns dos sistemas cerebrais responsáveis por nosso nível de consciência, pela linguagem e pela habilidade de resolver problemas? “Talvez não seja um circuito específico, mas a forma como eles interagem”, diz Hauser, da Universidade Harvard. O mais importante é que a busca por essas respostas ajuda a desmistificar os humanos como os únicos dotados de inteligência. “Paramos de discutir se os animais pensam”, diz a americana Diana Reiss. “Agora, debatemos como eles pensam.”
Quem não se comunica se trumbica
Quando a conversa está animada entre os pesquisadores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, eles ouvem uma voz eletrônica dizer “casinha”. É Sofia, uma legítima vira-lata de 6 anos, pedindo atenção. A cadela foi treinada para usar um teclado eletrônico para se comunicar. Cada símbolo corresponde a uma ação: ir para a casinha, fazer xixi, beber água, brincar, comer, passear e receber carinho.
Sofia não só aprendeu a relacionar os símbolos às ações como parece ter entendido um dos princípios básicos da comunicação: alguém precisa receber a mensagem para que ela seja eficaz. Em um experimento em que tinha dois teclados sem som à disposição, Sofia sempre preferia apertar aquele que estivesse à vista dos pesquisadores. Ela também consegue fazer algumas classificações. Na primeira vez em que foi apresentada a um preá, um pequeno roedor, apertou o símbolo de comida. Quando foi repreendida, apertou o símbolo de “brinquedo”. Queria despistar os pesquisadores e receber o preá, de qualquer jeito.
As habilidades de Sofia são uma mostra dos talentos dos cães para a comunicação. Como a espécie surgiu a partir da domesticação de lobos, acredita-se que foram escolhidos os animais mais dóceis, que costumam ser mais brincalhões e curiosos – um ótimo perfil para estimular a capacidade de aprendizado. Por isso, nenhum animal se comunica tão bem com os humanos quanto os cães.
ENTREVISTA - Irene Pepperberg
Se eles fossem iguais a nós...
Uma das principais pesquisadoras de animais diz que reconhecer a inteligência deles nos obrigaria a mudar o modo como os usamos.
ÉPOCA – Por que os estudos sobre a inteligência animal causam tanta surpresa?
Irene Pepperberg – Há a crença de que os seres humanos são os mais evoluídos. Para alguns cientistas, somos o auge da evolução. Para pessoas religiosas, os homens receberam de Deus o domínio sobre tudo. Não pensamos que a vida dos animais é complexa.
ÉPOCA – Quais são as implicações de reconhecer que os animais compartilham muitas habilidades conosco?
Irene – Se realmente acreditássemos que os animais são iguais a nós, teríamos de mudar nosso estilo de vida. Precisaríamos levar mais a sério a preservação do ambiente onde eles vivem. Também seria mais difícil usá-los como fonte de carne, de couro e pele para roupas. Ou como cobaias. Mas, por outro lado, eu também tenho consciência de que só estou neste mundo porque a medicina pôde testar remédios e vacinas neles.
ÉPOCA – Como a senhora resolveu esse dilema do uso dos animais pelos humanos?
Irene – Não sou totalmente vegetariana, mas tento comer o mínimo de carne possível. Moro em Boston, onde os invernos são terríveis. Por isso, preciso de botas forradas com lã e casacos de couro. Mas tento fazer com que esses itens durem muito tempo. Uso a mesma bota há 15 anos.
ÉPOCA – A senhora considera os animais tão inteligentes quanto nós?
Irene – É muito difícil comparar a inteligência humana com a dos animais. Às vezes, eles processam um tipo de informação como nós, outras vezes de maneira completamente diferente. Alex nunca teria capacidade para ter esta conversa. Mas podia dizer o que queria, aonde queria ir, e de modo muito enfático. Ele até entendia que as palavras são formadas por pedaços de sons e os usava para formar palavras novas. Uma habilidade muito sofisticada. O mais importante é que cada vez mais entendemos do que os animais são capazes.
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sábado, 30 de agosto de 2008
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