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sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Oliver, um cão que sobreviveu ao Katrina

Oliver é o sortudo cachorro de Alex Castro, do site Liberal, Libertário, Libertino. Alex estava morando nos Estados Unidos na época do Katrina, e foi *o-b-r-i-g-a-d-o* a deixar Oliver para trás, em casa com bastante comida e água, enquanto ele próprio se refugiava. Oliver sobreviveu sozinho durante muitos dias e, após os inúmeros esforços do dono, foi resgatado são e salvo. O texto abaixo foi postado no site de Alex e, de tão emocionante, achei válido publicar aqui também. No final tem um link para quem quiser saber os detalhes dos eventos na época do Katrina.

Ontem, caí no meu próprio truque: vi um filme ("Eu Sou a Lenda", com Will Smith) no qual 99% da humanidade é exterminada e só me debulhei em lágrimas quando morreu o cachorro. (Essa foi a parte mais triste do filme para mim também).

Agarrei o Oliver e não quis mais soltar, o bicho não entendeu nada. Antes, nessa mesma manhã, eu tinha passado duas horas lentamente tosando-o sob o sol.

Saco. Por que esses autores pregos têm sempre que matar o raio do cachorro? Queria ver um filme sobre amizade canina em que o pobre bicho chegue vivo ao final!

* * *

Quando vim morar nos Estados Unidos, muita gente achou loucura eu trazer meu cachorro. Já eu, além da óbvia obrigação de não deixar o bicho pra trás, achava loucura justamente ir morar fora sem meu cachorro. Sozinho, numa terra estranha, sem amigos, sem parentes: posso imaginar poucas outras situações onde ter um cão amoroso seja a diferença entre a sanidade feliz e a depressão mais insana.

Foi só quando recuperei o Oliver, depois de nossa separação de duas semanas durante o Katrina, que me dei conta que, há duas semanas, eu não abraçava ninguém, não experimentava calor humano (não tem calor mais humano que o canino), não dormia abraçado com um corpo quente, nem mesmo, provavelmente, tinha encostado em outra pessoa. Não é à toa que já ouvi um americano solteirão confessar que faz as unhas e os pés somente para que alguém *encoste* nele uma vez por semana. Aquela primeira noite com meu cãozinho, que eu já tinha dado como perdido tantas vezes, foi a maior confirmação possível da importância de ter um cachorro.

Poucos dias depois, acordei num domingo de madrugada com o Oliver passando mal. Eu estava longe de casa, longe do Rio, longe de Nova Orleans, sem internet nem celular, morando de favor no porão de alguém, acompanhado somente de uma sacola com dois livros e poucas roupas, sem saber se jamais voltaria para Nova Orleans, para minha casa, minhas roupas, meus livros, meu programa de Doutorado, minha bolsa, qualquer coisa. A situação mais precária da minha vida. E, no meio de tudo isso, meu cachorro me acorda passando mal.

O que fazer? Eu ainda não conhecia nenhum veterinário por ali e muito menos 24 horas. Mesmo se conhecesse, a consulta provavelmente seria uma fortuna, muito mais cara do que durante o horário comercial, e eu não tinha dinheiro quase nenhum, nem cartão de crédito pra poder rolar a dívida, e nem mesmo sabia se minha universidade continuaria pagando minha bolsa. O que fazer? Acordar a gentil família que estava me hospedando, usar a internet deles pra tentar encontrar um veterinário 24 horas nas imediações e pegar um táxi até lá? Ou será que eles me levariam? E se fosse muito caro? Os preços do Bay Area são assassinos. O que fazer? E se gastasse essa grana todo e não fosse nada demais? E pior, e se fosse alguma coisa séria? E se eu não tivesse dinheiro pra pagar o resto do tratamento?

Durante o Katrina, eu tinha tomado a primeira decisão de vida ou morte da minha vida - sem nem me dar conta. Sempre fui mal acostumado: decidia uma coisa e, se não desse certo, desdecidia. Mas durante o Katrina, sem carro, sem grana, sem amigos, sem informações adequadas, aceitei o conselho da Universidade, evacuei com eles sem levar o Oliver ("não vai ser nada, estaremos de volta em três dias!") e, por causa disso, passei os piores dias da minha vida e quase perdi meu cachorro. Sua própria presença ali, tossindo e vomitando na minha cama, era a definição de canis ex machina.

E, agora, o que fazer? Não seria essa outra daquelas decisões de vida ou morte? Será que agora vai ser sempre assim? E se eu largasse tudo, aporrinhasse todo mundo, levasse ele pro veterinário e acabasse gastando 200 dólares que eu não tinha e que iriam me fazer muita falta naquela conjuntura precária? E se ele tivesse algo sério de verdade, um veneno lhe corroendo as entranhas, e eu esperasse até segunda de manhã só para algum veterinário me dizer que era tarde, deveria tê-lo trazido antes, quer se despedir agora antes de eu colocá-lo pra dormir? E agora, o que fazer? Que decisão tomar?

Desabei. Abracei meu cachorro doente e chorei, chorei muito, chorei a noite inteira, chorei e implorei pra ele lutar, pra ele melhorar, pra ele não me abandonar, pra ele não me deixar sozinho naquela terra, e jurei nunca mais me separar dele. E, entre as lágrimas, continuei observando-o cientificamente, com todo um elaborado sistema de sinais para saber qual seria o ponto onde eu pararia tudo para levá-lo ao veterinário: se vomitar mais uma vez, se der mais três tossidas, se não se empolgar com a bolinha, etc.

Por fim, não era nada. Só uma indisposição. Ele botou tudo pra fora e melhorou. Dormimos nos braços um do outro, seu pêlo todo ensopado de lágrimas. No dia seguinte, ele acordou bom, e eu também, já curado do meu desespero de pai zeloso. Por isso que não quero ter filhos, cruzes.

Sempre esquecer as coisas ruins é uma de minhas maiores qualidades. Eu tinha esquecido completamente desse episódio. Só lembrei dele ao chorar agora durante o filme. E também me dei conta de que jamais tinha contado isso pra ninguém. Ficou parecendo um post da Camila, a blogueira menos dramática que conheço, mas vá lá. Todo mundo tem direito de dar uma camilada ocasional.

* * *

Não ter cachorro é o pior tipo de solidão.

* * *

Para ler: as aventuras do Oliver e eu durante o Katrina.

Para ver: fotos do bicho, só para fãs e loucos por animais.

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