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domingo, 27 de abril de 2008

Amigos até que a morte nos separe

A reportagem foi matéria de capa da Veja edição 1992 de 24 de janeiro de 2007.

A humanidade mantém laços afetivos mais fortes com os cães do que com qualquer outro bicho. A ciência vem desvendando as razões dessa história de amor que já dura 12 000 anos.

Em um dos trechos mais tocantes do livro Marley & Eu, o jornalista americano John Grogan narra como o cão de estimação do título reagiu quando sua mulher, Jenny, sofreu um aborto espontâneo. Marley aproximou-se cabisbaixo da dona e deixou-se abraçar por ela – era como se tivesse sido contagiado por sua tristeza. A relação entre o labrador e a família de Grogan é a matéria-prima do livro – e o imenso interesse despertado pelo mesmo constitui um ótimo indício de como os seres humanos compartilham esse apego pela cachorrada. Mais de 3 milhões de exemplares de Marley & Eu foram vendidos no mundo desde seu lançamento, em outubro de 2005. No Brasil, foram 140.000 exemplares – o suficiente para fazer dele o primeiro colocado na lista de VEJA dos mais vendidos de 2006 na categoria de não-ficção. Seu sucesso dá uma medida da importância que um cão pode assumir na vida afetiva de seus donos. Nos lares, sempre houve espaço para uma gama variada de animais, dos peixes aos gatos e aves. Com nenhuma dessas espécies, contudo, o homem estabeleceu uma relação tão íntima quanto com os cães. Animais de natureza social, eles são capazes de manter uma comunicação muito efetiva com seus donos.


Para além da fidelidade e de outros atributos que costumam ser associados aos cachorros, é aí que reside o diferencial dessa afeição: ela dispensa as palavras. "É uma relação muito básica. Não há complicações, discussões ou melindres", diz Grogan (veja entrevista com o autor nesse link). A especialista Patricia McConnell, autora de Cães São de Marte – Donos São de Vênus, atesta essa impressão: "A chave da amizade entre homens e cães é que se trata de uma ligação puramente emocional". O cão tem uma competência ímpar para comunicar seus desejos – comida, água, carinho, necessidade de um passeio. Também é capaz de ler as emoções de seus donos e responder apropriadamente a elas, num fenômeno que os especialistas chamam de ressonância afetiva.

UM POLÍTICO "CACHORREIRO": O senador Arthur Virgílio tem um poodle, um yorkshire e duas pit bulls. Orgulha-se da disciplina deles: "É só eu dizer 'feio' que eles obedecem". Nos cães, encontra uma lealdade rara na política: "Nunca vi um cachorro traidor".

De acordo com um levantamento da Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais de Estimação (Anfal Pet), há hoje no Brasil quase 29 milhões de cães de estimação. A concorrência dos gatos é forte – eles já são "maioria" nos lares americanos, e sua população cresce a taxas maiores que as dos cachorros também por aqui (embora ainda não cheguem a representar metade deles). Mas, apesar disso, é difícil imaginar que os bichanos – com o perdão de seus fãs incondicionais – possam oferecer o mesmo consolo afetivo proporcionado por um cão. O próprio John Grogan, aliás, admite que não conseguiria escrever um livro como Marley & Eu se o animal em questão fosse um gato, pela diferença de natureza nessas relações.

Esse entendimento tácito entre as espécies levou milhares de anos para se aprimorar. "O cachorro passou por um processo de domesticação intenso. Podemos dizer que o cão que conhecemos hoje é uma obra humana", diz o zootécnico Alexandre Rossi. A evidência arqueológica mais antiga dessa amizade, uma mulher enterrada junto de seu cão encontrada em Israel, data de 12 000 anos atrás. Mas sabe-se que essa domesticação se iniciou bem antes, há mais de 100.000 anos, quando os ancestrais do homem começaram a dar abrigo aos filhotes de lobos que rondavam seus acampamentos. A relação, a princípio, era de caráter utilitário: o cão ajudava na caça e na proteção, em troca de comida. Presume-se que aqueles animais que se adaptaram melhor ao convívio humano ganharam o que os biólogos chamam de vantagem adaptativa: tinham mais chance de sobreviver e gerar descendência que os demais. Num processo que o naturalista inglês Charles Darwin chamava de "seleção artificial", o homem foi criando cães cada vez mais apropriados a suas necessidades. Pelo mesmo processo, foi se desenhando a incrível variedade de raças caninas, do minúsculo chihuahua ao enorme dinamarquês.

AMOR QUE RESISTE AO XIXI: O vídeo que flagra Ana Maria Braga levando um esguicho de xixi de um poodle faz sucesso no YouTube. Dona de nove cães, ela está acostumada com travessuras. "Gostar de cachorro tem a ver com carência. Preciso do carinho deles", diz a apresentadora, que gasta 500 reais por mês com suas mascotes.

Os laços afetivos entre as espécies também foram depurados ao longo da evolução. A comunicação foi facilitada, de saída, pelas semelhanças entre a estrutura social do homem e a dos caninos. Tal e qual ocorre nas sociedades humanas, a matilha é um grupo regido pela hierarquia e no interior do qual os indivíduos têm de saber decodificar as emoções de seus pares. "Assim como o homem, o cão tem necessidade de se ligar a outro ser e adotá-lo como referência", diz a veterinária e psicóloga Hannelore Fuchs. É razoável supor que, sempre que uma nova cria surgia, os homens davam preferência não só aos animais que atendiam a suas necessidades práticas, mas também àqueles que tinham traços comportamentais que facilitavam a compreensão mútua. E assim se refinou a capacidade de ambas as espécies de interpretar o humor e as reações do outro.

Estudos recentes ajudam a entender a natureza dessa ligação. Boa parte deles toma como ponto de partida a comparação entre o comportamento do cão e o do lobo, seu parente selvagem. As duas espécies são muito semelhantes geneticamente – a ponto de a reprodução entre elas ser factível. Mas há um abismo comportamental e tanto: o cão hoje dificilmente sobreviveria nas florestas onde os lobos caçam. Seu meio ambiente é o do homem. "Mesmo os cães de rua não vivem sem alguma forma de interação com o ser humano", observa o psicólogo e estudioso do comportamento canino César Ades, da Universidade de São Paulo. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos com animais que vivem em abrigos mostraram que, mesmo não sendo acostumados à presença regular de um dono, eles preferiam a companhia humana à de outro cachorro. "Diferentemente do lobo, o cachorro desenvolveu uma capacidade de interação com o ser humano muito apurada. Mas ele também sabe que o seu dono não é outro cachorro", esclarece Ades.

TAMANHO-FAMÍLIA: Na infância, Adriane Galisteu queria um cão, mas a mãe não permitia. Hoje, a apresentadora divide seu apartamento com George, um golden retriever. Nos passeios, leva pá e saquinho. "Cachorro grande faz cocô grande", diz. O bicho passa seis horas diárias numa "escolinha". Custo: 800 reais por mês.

Uma das maiores autoridades mundiais em comportamento canino, o húngaro Ádám Miklósi coordenou uma pesquisa na qual filhotes de cachorro e de lobo foram criados por pessoas, em condições idênticas. Testadas numa série de situações que exigiam comunicação com seus criadores, as duas espécies mostraram resultados diversos. A competência de lobos e cães é semelhante quando se trata de interpretar pistas visuais dos humanos – por exemplo, uma mão apontada na direção de um prato de comida. Mas só os cães fazem "pedidos" ao homem. Em situações nas quais a comida estava escondida numa caixa fechada ou pendurada numa corda que não cedia, os lobos limitavam-se a roer a caixa ou puxar a corda com insistência, enquanto os cachorros tentavam chamar a atenção dos tratadores com latidos e olhares. Sim, olhares: outra conclusão do estudo é que o cão faz mais contato olho a olho com o homem que o lobo. Os lobos também não eram capazes de fazer um sinal conhecido por todo dono de cachorro – eles não sacodem a cauda. Miklósi e sua equipe realizaram ainda pesquisas comparativas de cães e gatos, com resultados similares: os bichanos entendem sinais dos donos, mas não buscam ajuda humana quando enfrentam dificuldades na obtenção de comida. O gato ainda mantém um certo comportamento de caçador. O cachorro é um animal doméstico, que espera a comida do dono.

Para os humanos, o convívio com os cães gera benefícios hoje mais que comprovados à saúde e à mente. Nos últimos anos, os cientistas trouxeram à tona fartas evidências disso. Já se mostrou que as crianças que interagem com eles desenvolvem a coordenação motora e as habilidades socioemocionais mais rapidamente. Os idosos também tiram proveito desse relacionamento. Uma pesquisa americana revelou que, para as pessoas entre 65 e 78 anos, a companhia de um cão contribui decisivamente para evitar a depressão e o isolamento. E, por fim, essa amizade pode ser útil para os doentes. Um exemplo: a pesquisadora Karen Allen, da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, verificou que pessoas com hipertensão que têm cachorros sofrem menos crises em situações de stress.

A EDUCAÇÃO PELO CÃO: A cantora Fernanda Takai, da banda mineira Pato Fu, aprendeu noções de responsabilidade com os cães que teve na infância. Com dois deles em casa, ela tenta passar a mesma lição a Nina, sua filha de 3 anos: "Sinto que, no contato com eles, ela está aprendendo a lidar com os limites".

A cooperação entre cachorros e homens alimentou uma quase-santificação do animal. São conhecidas histórias de cachorros que salvaram a vida de seus donos, ou até que morreram ao fazê-lo. A imagem do cão que se sacrifica por seu dono é comovente – mas esse comportamento tem uma explicação bem menos idealizada. "Do ponto de vista da biologia, não existe sacrifício. O que parece comportamento altruísta por parte de um cachorro quase sempre é apenas resultado de seu comportamento de matilha", diz o húngaro Miklósi. Assim, se um cão salva um menino do incêndio, é porque em situações de stress ou perigo o animal tenderia a manter seu grupo todo reunido. E é claro que ele não tem uma noção exata do perigo que corre ao entrar numa casa em chamas.

Isso pode valer para a perspectiva mais objetiva da ciência. Para o dono de cachorro, que tende a avaliar o que vê em seus próprios termos subjetivos, é muito difícil não se impressionar com a lealdade do cachorro. A fidelidade dos cães já era notada na Odisséia, de Homero, composta por volta do século VIII a.C. Quando o herói Ulisses retorna a sua casa na ilha de Ítaca depois de uma ausência de vinte anos, o velho cão Argos é o primeiro a reconhecer seu amo – e morre de imediato, tomado de emoção. Ulisses, por sua vez, deixa escapar uma lágrima por Argos.

Ao longo dos tempos, as virtudes e os defeitos caninos ganharam inúmeras representações culturais (veja quadro na reportagem original). Além da fidelidade, o cão tornou-se símbolo de heroísmo e afetividade – mas também de gaiatice e agressividade. Serviu, ainda, de emblema político. Na França absolutista, o lulu de perua, com suas roupas de grife e seus salões de beleza, virou símbolo da insensibilidade social dos ricos. Por outro lado, pode-se sempre lembrar que o cão também já foi emblema de liberdade. Em seu livro Da Dificuldade de Ser Cão, o escritor francês Roger Grenier conta que certa vez visitou a Checoslováquia comunista na companhia de seu animal de estimação. "Vivam os cachorros", gritou um jovem em Praga quando viu Grenier passeando com seu cão. Era uma forma disfarçada de protestar contra a opressão comunista.

As pessoas tendem a ver seu bicho de forma humanizada e a considerá-lo como um filho, um amigo. No fundo, o animal responde à necessidade atávica que todo ser humano tem de cuidar de outro ser vivo. De certo modo, ele funciona como uma criança substituta, especialmente para os donos mais velhos. Não é de estranhar que muitos se intitulem "papai" ou "mamãe" de seu bicho. Nas metrópoles modernas, em que as pessoas tendem a ter menos rebentos, ele preenche uma lacuna afetiva importante. Mesmo adulto, requer cuidados não muito diferentes dos que se dispensam a uma criança, pois é necessário dar-lhe comida, banho e abrigo. Em troca, estará sempre à disposição para brincadeiras e afagos. O cão é um animal gregário, o que marca uma diferença e tanto em relação ao gato, um bicho mais individualista (os felinos em geral não vivem em grupos; a exceção notável é o leão). Em certa medida, ele transfere para suas relações com o homem os traços sociais de uma matilha selvagem. Ou seja, há sempre uma disputa pela dominância.

Na maior parte do tempo, advertem os especialistas, o cão ganha a parada e se estabelece como o maioral do pedaço. São poucos os donos que sabem implementar limites efetivos para seus animais (lembramos que isso é muito ruim, tanto para o dono quanto para o cachorro). O predomínio do cão geralmente não traz maiores danos (discordamos *totalmente* dessa afirmação!!!), mas às vezes (na prática não é "às vezes" e sim "quase sempre", sendo exceção apenas quando o cachorro em questão tem um temperamento muuuito submisso) se traduz em comportamentos incontroláveis e até em agressividade, casos em que se torna aconselhável buscar um adestrador. Quando a relação desanda, há sempre o risco de que a coisa deságüe em tragédia – para o bicho ou, em situações tão raras quanto chocantes, para seu dono. Já se registraram casos de pessoas que foram atacadas e sofreram sérios danos, quando não foram mortas, pelo próprio animal.

A boa notícia é que sempre há a possibilidade de reverter a relação de dominância ("sempre" é relativo, depende muito mais do empenho do dono do que do problema em si, se o dono não estiver disposto a trabalhar para reverter a situação junto com o cachorro e com o treinador, o problema não vai ser resolvido). Assim como numa alcatéia o lobo-alfa pode a qualquer momento ser desafiado e desbancado por um concorrente mais jovem, também o cachorro que se torna o senhor da casa pode ser colocado na linha pelo dono, se este souber agir com firmeza (por favor entendam que "firmeza" não significa violência, significa impor limites e ter pulso firme para mantê-los, pois um bom líder se mantém no posto por respeito e não por medo). Em geral, é possível conseguir o domínio sobre o cachorro com reprimendas firmes e recompensas sempre que ele obedece a uma ordem (infelizmente não é tão simples assim, só isso pode não ser suficiente para reverter a situação, principalmente se o cachorro já é o rei da casa há algum tempo ou se tem um temperamento naturalmente dominante). Os adestradores propõem um teste definitivo para saber se é o dono ou o cachorro quem manda na casa: coloque um pedaço de carne no chão e diga "não" se o cão se aproximar. O cachorro que aceitou seu papel de "dominado" na relação com o dono só vai comer o petisco quando autorizado (isso está *totalmente* furado: seja submisso ou dominante, a maioria dos cães sadios não vai resistir a uma guloseima no chão, a não ser que o cachorro já conheça o comando "não" e já tenha sido treinado para não pegar comida, coisa que nós da Lord Cão ensinamos nas nossas aulas em grupo). "Todo dono em algum momento se vê diante desse dilema existencial: estabelecer quem manda, o homem ou o cachorro", diz John Grogan, do alto de sua experiência com o bagunceiro Marley. Mas quem é capaz de resistir às ordens de seu amado totó? (Que pergunta! Todos os que queiram uma relação saudável para ambas as partes!!!).

Leiam a matéria completa nesse link.

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