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segunda-feira, 2 de março de 2009

O melhor amigo

Do site do G1, o portal de notícias da Globo.

Histórias sobre pit bulls e rottweilers dilacerando criancinhas indefesas capturam tanto a atenção do público quando chegam às páginas dos jornais que a gente acaba esquecendo um fato assombroso: esse tipo de ataque deveria ser infinitamente mais comum. Digo “deveria” por uma razão estatística bem simples. Só nos EUA existem cerca de 60 milhões de cães. Os americanos (e os brasileiros, decerto) convivem com uma multidão de predadores carnívoros, cuja diferença genética em relação a lobos selvagens é, para todos os efeitos, desprezível. Sabe quantos cachorros matam pessoas por ano nos EUA? Quinze, em média – um cão a cada 4 milhões. A vastíssima maioria desses bichos merece cada sílaba da designação “melhor amigo do homem”.

Fica claro que essa convivência tão harmoniosa não é obra do acaso. Os cães são um dos exemplos mais eloqüentes (e, por que não dizer, bonitos) de como a evolução – nesse caso, a evolução artificial, guiada por seres humanos – pode transformar profundamente a morfologia, o comportamento e a mente de uma espécie. Eles também representam a mais antiga história de convivência voluntária entre nós e outra espécie animal, o que nos permite juntar pedacinhos de evidência das mais variadas áreas – antropologia, arqueologia, genética e etologia (o estudo do comportamento animal) – para entender a origem e o destino desse casamento bem-sucedido.

No princípio era o lobo

Comecemos com um pouquinho de controvérsia: embora ninguém discuta que nossos cães sejam os mais antigos entre os animais domésticos, descendentes de lobos da Era do Gelo, o início desse processo flutua numa fronteira imprecisa entre 100 mil e 15 mil anos atrás. A dúvida está relacionada principalmente às técnicas de relógio molecular de DNA, que apontam uma separação antiga (talvez superior a 100 mil anos) entre as linhagens de cães e lobos, e os dados da arqueologia e da paleontologia, que só encontram fósseis de canídeos com características “cachorrescas” muito mais tarde. O “atraso” para o aparecimento de verdadeiros cachorros fósseis talvez se deva ao tempo necessário para que diferenças significativas de forma entre eles e os lobos se acumulassem, embora a rápida transformação morfológica das raças modernas faça essa idéia parecer não muito provável.

De qualquer maneira, não é à toa que o bicho se tornou o primeiro e o mais fiel da nossa longa lista de criaturas domésticas. Em muitos sentidos, gente e cães foram feitos um para o outro. Sem forçar muito a barra, dá para comparar qualquer processo de domesticação animal a uma progressiva “humanização” do candidato a bichinho de estimação. Se isso for verdade (e tudo indica que é), a verdadeira domesticação só é possível para espécies que já são, digamos, “pré-humanizadas”.

Com isso, quero dizer que é necessário um pacote especial de características para ser um candidato vitorioso na eleição para bicho doméstico do ano 100000 a.C. E a principal envolve sociabilidade: mamíferos que vivem em uma estrutura social complexa, com relações de aliança entre indivíduos não-aparentados e hierarquia bem-definida, têm boa chance de se mesclar às sociedades humanas, que funcionam de forma parecida. O que o(s) dono(s) humano(s) fazem com essas criaturas equivale a um golpe de estado: o macho (ou a fêmea) alfa, ou seja, o líder do bando, é substituído pelo amo bípede. A partir daí, as gerações seguintes do animal já vêm ao mundo num “bando” cujo alfa é sempre um ser humano.

Comida de graça

Ninguém sabe exatamente quando e onde esse processo aconteceu pela primeira vez com os cães, embora alguns dados genéticos apontem para o Extremo Oriente como um dos berços caninos. A hipótese mais plausível sugere que foram os lobos que vieram até nós, e não o contrário: a abundância de restos de caça nos acampamentos humanos da Era do Gelo teria atraído os bichos. Em troca da comida fácil, as criaturas eram excelentes guardas e companheiros de caça. E foi aí que o poder da seleção natural/artificial começou a entrar em ação.

Uma das hipóteses mais influentes atualmente sugere, graças a experimentos feitos na Rússia com raposas, que o fator-chave foi a mansidão, ou seja, a capacidade de tolerar e até apreciar a presença de humanos. Na verdade, a única forma de seleção teria se dado sobre a mansidão dos protocachorros: as demais características de cães domésticos teriam vindo “de carona”.

Os experimentos com raposas, como eu disse, são um exemplo eloqüente disso. Os bichos selecionados para cruzamento com base apenas na sua tolerância a humanos foram se tornando progressiva e bizarramente “cachorrescas” de geração para geração. Os focinhos encurtaram, as orelhas ficaram caídas, a pelagem se tornou malhada e os rabos, enroladinhos. Coincidência ou não, são várias das mesmas características que diferenciam cães de lobos hoje.


Crianção

E são também características de mamíferos bebês – fenômeno conhecido tecnicamente como pedomorfose, algo como “forma de criança” em grego. Desse ponto de vista, nós não tratamos nossos cães como crianças à toa: o processo de seleção artificial que deu origem a eles os transformou em bebês-lobos perpétuos, mais dóceis, obedientes e sociáveis que seus ancestrais.

Esse é só um dos resultados de milhares de anos de co-evolução humano-canina. Outro, e mais impressionante ainda, é que a convivência moldou as capacidades mentais dos bichos e, de certa forma, aproximou-as das nossas. Todo mundo já conheceu algum cachorro que “só falta falar”; descontados os exageros, pesquisas em laboratório comprovam que eles provavelmente são os animais mais especializados do mundo em “ler” a fala e o comportamento humano. Alguns cães são capazes de entender cerca de 200 palavras diferentes, e muitos dos bichos conseguem sacar também o gestual e as expressões faciais de seus donos – performance muito superior à dos chimpanzés, os mamíferos geneticamente mais próximos de nós. Tudo isso, é claro, porque os cães mais habilidosos no domínio do “humanês” tiveram chances mais elevadas de se reproduzir ao longo da história.

A semelhança de estilo de vida é outro ponto crucial. Vivendo lado a lado conosco, alimentando-se de nossa comida, enfrentando o mesmo clima e, às vezes, as mesmas doenças, os cães desenvolveram um conjunto de enfermidades que, guardadas as devidas proporções, espelham as nossas. Azar deles, sorte da ciência: como essas enfermidades se refletem até no nível genético, nossos companheiros de milhares de anos podem conter a chave para a compreensão e a cura de inúmeras doenças.

Gostaria de encerrar este breve passeio pela história evolutiva canina com um ponto já martelado à exaustão desde Darwin, mas que ainda assim vale a pena ser lembrado. Visualize com os olhos de sua mente toda a gigantesca diversidade de raças caninas, dos pequineses aos dinamarqueses: todo o esplendor de pêlos (e falta deles), cabeças afiladas ou massudas, tamanhos diminutos ou agigantados. Se todos esses bichos existissem separadamente na natureza, ninguém hesitaria em classificá-los como espécies diferentes; de fato, a distância morfológica que existe entre várias delas certamente excede a que separa uma espécie de raposa da outra, digamos.

No entanto, foi a mão humana a responsável por forjar essa gama imensa de formas, em poucos milhares de anos. Diante disso, fica um bocado difícil duvidar que a natureza é capaz de fazer muito, muito mais com dezenas de milhões de anos à sua disposição.

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